DEMOCRACIA E AUTORIDADE

 




A democracia é um ideal social firmado na ideia da liberdade individual e na autonomia da vontade, bem como na negação - pratica ou teórica - da autoridade e da tradição. Esse ideal, por sua vez, está sustentado por crenças que chegaram ao esplendor do seu desenvolvimento ao longo dos séculos que se seguiram ao fim da idade média e que despontaram na filosofia iluminista. 


CRENÇA NA TECNOLOGIA

Para um democrata, não pode haver nenhum poder ou autoridade independente daquela que é controlada pelo povo. Essa dicotomia, necessária e inevitável para um democrata, representa a oposição entre a autoridade sobre o povo e o poder do povo em si, bem como sua capacidade natural de se auto-governar. 

A democracia seria uma revolução permanente contra o governo, e o povo deveria se opor sempre a autoridade, porque sempre teve o poder de auto-governo. Cooperando mutuamente, povo pode se auto-organizar de forma natural, livre da autoridade daqueles que tomam o poder do povo para si. Quanto ao avanço da modernidade em direção ao modo de vida urbano e industrial, não há problemas, desde que o povo tenha controle sobre os meios de produção através dos seus representantes. 

De acordo com essa visão, onde quer que haja submissão a autoridade não há liberdade, e todo aquele que julga ter autoridade é um escravizador. Os democratas seriam os criadores das instituições que permitem a livre evolução da sociedade, e os governistas são aqueles que tentam usar a sociedade e suas instituições liberais para proveito próprio. Os democratas reagiriam a isso lutando contra essa apropriação de poder politico. Os inimigos da democracia são precisamente aqueles que não permitem que a sociedade avance. A democracia seria um modo de organização igualitário da sociedade de massas, e essa igualdade significa liberdade do jugo da autoridade. 

Os pensadores modernos em sua maioria foram sempre fascinados pelo progresso da ciência e da tecnologia. Os novos avanços técnicos e científicos modificaram as concepções quanto ao posicionamento do homem no universo, a origem da vida e a natureza da razão. Esse despertar do intelecto humano remontaria aos Gregos, supostos "criadores" da democracia, embora na antiguidade o ser humano não possuísse as maravilhas da técnica industrial que mais tarde foram arranjadas ao seu serviço. 

A modernidade é descrita como possuindo um espirito jovem e inventivo, que expandiu as capacidades produtivas do trabalho humano de forma muito rapida, e isso significa que a civilização caminhava rumo a geração do maior bem-estar social possível. Pela primeira vez na história da civilização a humanidade alcançou um ponto onde os meios para satisfazer as necessidades excedem as próprias necessidades. Isso significa que o desenvolvimento de uns não geraria mais a miséria de outros. 

Era esse desenvolvimento cientifico e tecnológico que assegurava o fim da opressão e permitia que a humanidade se reestruturasse de forma mais igualitária. A coletivização permanece como o elemento que mantem a democracia supostamente viável num plano econômico e social. É a ideia de usar as conquistas da cultura civilizada para o interesse de todos os seres humanos. 

Esta nova filosofia do progresso era considerada uma proposta para toda a humanidade, capaz de nos livrar da metafisica e das hipóteses sobrenaturais. As novas perspectivas tecnológicas prometiam liberdade e dignidade ao ser humano. Esta seria a única via para a perpetuação do modo de vida civilizado, e os indivíduos em posições de poder são os verdadeiros inimigos do progresso. Questionar o avanço tecnológico seria uma ameaça a democracia, pois soaria como reação dos dominantes a tomada de poder pelo povo. 

Há ainda a crença numa tendência a integração do trabalho para a produção de riquezas comuns, o que tenderia a dar ao individuo a liberdade para realizar seus desejos. A democracia seria então o próximo passa na evolução do humano, abandonando as questões de fé e passando as questões de conhecimento, onde cada individuo cria o bem da humanidade por si e para si, independente de qualquer autoridade ou orientação externa. Essa autonomia produtiva deve se traduzir em liberdade de ação.


CRENÇA NO MATERIALISMO

O materialismo e o economicismo trouxeram a possibilidade de tratar das questões sociais em termos empíricos, sem recorrer a metafisica. Os pensadores revolucionários estavam vivendo em uma sociedade que havia professado o valor de "pensar por si mesmo", e o materialismo representava essa suposta independência. Afinal, uma explicação com base material depende de evidências empíricas e não de interpretações por parte de pessoas autorizadas a falar em nome da tradição. 

Portanto, era suficiente dizer que toda a ciência confirma o materialismo. Isso era a prova inegável de que o materialismo é a forma correta de se pensar o mundo. O materialismo era anunciado como uma grande verdade, fundamental e decisiva. Este materialismo esta em relação direta com o humanismo, sendo a humanidade  o desenvolvimento ultimo e supremo e a mais alta manifestação da animalidade. 

O humano é colocado num grau mais elevado em relação aos outros animais porque possui o poder de raciocinar. O raciocínio significa a capacidade de produzir seu próprio desenvolvimento. Esta seria a qualidade mais sublime do humano, e implica na ideia de que a história da humanidade é a história do progresso civilizatório. É por meio da razão emancipada que o humano pode quebrar as barreiras impostas pela natureza. 

Deus então é negado, pois seria um maligno algoz que impedia o homem de provar da arvore do conhecimento e queria que o homem continuasse para sempre como uma besta de quatro perante o Deus eterno. Ser apenas um animal significaria permanecer submisso a Deus, portanto materialmente e racionalmente pobre, como qualquer animal. Satanás seria simbolicamente o emancipador do homem, já que a Serpente do Eden estava falando a verdade e Deus estava mentindo. O fruto não causaria a morte, mas daria poder aos homens para conhecer o bem e o mal, o que significava pensar por si mesmo e fazer boas escolhas. 

Na interpretação moderna, a expulsão do paraíso representa emancipação do homem, a liberdade da tirania de um Deus que exige obediência. A negação dessa exigência de obediência é o ideal de qualquer democrata, liberal ou radical, e operar essa negação é uma forma de negar também o conceito de autoridade que foi herdado da cultura cristã. O Deus cristão precisava ser negado porque o cristianismo apoiou a hierarquia das classes e formas de poder que eram externas ao indivíduo.


CRENÇA NO PROGRESSISMO E NO INDIVIDUALISMO

No século XX, a rejeição ao governo se estende para todas as outras instituições sociais. A falha das instituições é vista como inerente a sua própria natureza. Com o desenvolvimento do processo de individualização, a afirmação passa a ser cada vez mais que guiar apenas pela própria razão não significa apenas usar a razão humana, mas a razão individual. O indivíduo deve negar o auxílio de toda a forma de autoridade, mundana ou espiritual, pois só dessa forma ele seria capaz de produzir sua própria existência. 

Não se pensa mais em termos de orientação comum, mas de auto-orientação. Paradoxalmente, há uma cobrança de perfeição em relação a autoridade que não é aplicada ao indivíduo isolado. Os democratas só aceitam a autoridade do indivíduo sobre si mesmo, e do fato de que ninguém é perfeito, deriva-se a afirmação de que cada um deve ser o único mestre de si mesmo. 

Como a única autoridade reconhecida é do indivíduo sobre si mesmo, a escravidão do sujeito aos seus próprios caprichos e idiossincrasias não é considerada humilhante, ao contrário, a opção de não ser o único senhor de si não existe, nas palavras de Jean Paul Sartre "O ser humano está condenado a ser livre". 

Nesse cenário, não há liberdade para buscar um critério de validação da ação na tradição, já que as ações humanas não devem estar sujeitas aos valores passados. As leis naturais não apontam para o sentido da existência, apenas representam forças neutras que governam o funcionamento da matéria, e só podemos estar em conformidade com essas leis na medida que negamos qualquer autoridade que possa ser reconhecida. Isso significa também adequar-se as transformações, representadas pelo processo acelerado de mudanças sociais. Permanecer por muito tempo no mesmo estado significaria não progredir. 

Cada vez mais o progresso da sociedade se mede pelo aumento da liberdade individual. O ser humano progrediu subjugando as forças da natureza para o seu próprio uso, e a cada passo ele se livrou um pouco mais da autoridade humana ou divina. Em nome da autonomia do ego, os humanos devem enfrentar a proibição e a interferência de todo tipo de autoridade.  

Na virada do século XXI, uma onda de liberalismo se formou avassaladora em torno do debate politico, levando ao democratismo radical que é o anarquismo, a negação completa da influência do Estado na sociedade.


A REJEIÇÃO DA AUTORIDADE NO PROCESSO MODERNIZADOR

O anarquismo do século XIX imaginava que os espaços de autonomia local eram auto-sustentáveis e totalmente capazes de manter a ordem sob todas as condições e circunstancias, desde que protegidas das imposições originarias do Estado. Legitimava-se, assim, a "naturalidade" da civilização, desde que fosse mantida a autonomia dos grupos que fazem parte dela. A anarquia, isto é, uma sociedade sem o Estado e suas armas de coerção, era visualizada como uma ordem não coercitiva na qual a necessidade não se chocaria com a liberdade nem esta se colocaria no caminho dos pré-requisitos da vida em grupo.  Porém, a necessidade de segurança não pode ser satisfeita sem que se abra mão de uma parcela de liberdade. Não se pode permanecer seguro num mundo onde qualquer um pode fazer qualquer coisa. A comunidade real, diferente da comunidade sonhada, exige a obediência e a lealdade incondicional a um grupo limitado, e impõe desconfiança em relação ao que vem de fora.

Hoje o anarquismo, tanto de esquerda quanto de direita, aponta para o ideal de uma nova sociedade, onde existiria uma unidade comunal de sentimentos e ações. Esta comunidade totalmente sem hierarquia nunca se realizou, mas este ideal vem sendo explorado pela própria cultura globalizada. O mercado consumidor transforma as relações humanas em mercadorias, de forma que a comunidade sem hierarquia complementa a sociedade totalmente hierarquizada, ou seja, a sociedade atomizada. Em separado, cada um desses ideais é igualmente utópico. A economia de mercado promove um impulso exagerado, sabendo que esse movimento será amortizado pela "economia moral". Sem esse fator regulatório, o mercado morreria de seu próprio excesso. É a solidariedade, exercida com a  devida moderação, que mantem o impulso avassalador do lucro nos trilhos do acumulo extensivo e intensivo. Sem o freio da cooperação mútua, a locomotiva capitalista provavelmente descarrilaria. Um pouco de cooperação é uma válvula de escape de uma sociedade altamente competitiva. A regra define a exceção e é por ela confirmada.

A nova anarquia se compreende como uma superação do anarquismo clássico e tenta resolver esses paradoxos com uma negação mais radical da ordem social. Não aponta para uma organização social ideal, mas para a ideia de que nenhuma organização social é necessária. Significa o descompromisso com a ordem social como nós a compreendemos. Mas a não compreensão não significa a extinção da ordem, e sim o fato de que esta ordem deve penetrar cada vez mais profundamente na subjetividade. 

Para esta nova noção de anarquia, a organização deve emergir espontaneamente das relações imediatas entre os indivíduos. A crítica anarquista então passa a ser uma crítica a toda forma de mediação. A autenticidade humana estaria nos instintos. Mas a ação supostamente instintiva, que visa o desejo natural, ainda pode estar sendo guiada por uma racionalidade oculta e uma cultura internalizada. A ordem anárquica deve emergir do caos, da ausência completa de coerções, mas não pode se livrar dos valores subjetivados, nem julga-los como apropriadamente instintivos,  ou culturais. As relações ficariam reduzidas a estereótipos de relações puras, supostamente incondicionadas totalmente, mas essa pureza não pode ser reconhecida como tal senão pelo próprio indivíduo. Em outras palavras, os anarquistas se tornaram habitantes do reino da incerteza. 

Na pós-modernidade, a sociabilidade é resultado das interações livres entre indivíduos auto-orientados e auto-centrados. Neste contexto, a autonomia e a liberdade exigem, em ultima instância, que neguemos radicalmente a ação condicionada, voltada ao outro. Significa não viver sob qualquer forma de heteronomia, o que acaba significando viver sob padrões subjetivos e sempre abertos a mudança. 

Os valores passam a ser efêmeros porque não estão mais em consonância com as crenças e convicções herdadas da tradição, mas são validados pela conveniência do momento. Surge uma desconfiança quanto a uma intenção domesticadora em todas as relações de autoridade. A anarquia colabora com este processo no sentido em que aponta para o pluralismo, onde a história coletiva é substituída pelo emaranhado caótico de histórias individuais. 

Aos poucos, o próprio processo de modernização se encarregou de instaurar uma crise de autoridade. Desde o início do século XX, a politica cortou definitivamente seus laços com a tradição, continuando o processo histórico de secularização. Esta crise migrou para a família e para a educação. As pessoas já estabelecidas no mundo já não tem autoridade sobre os recem-chegados. Esta crise de autoridade está presente tanto no uso da violência quanto na ausência de obediência voluntária.

Um outro efeito da ausência de autoridade é a necessidade incessante de diálogo; troca de ideias, informações e opiniões, bem como da renegociação constante  das relações por meio de discussões, acordos e contratos. Também a retórica, precisa ser empregada incessantemente como meio de convencer o outro, o que é incompatível com a existência e o respeito a autoridade, pois a persuasão pressupõe igualdade e opera mediante processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso. Contra a ordem igualitária da persuasão, ergue-se a ordem autoritária que é sempre hierarquica. Porém, quando há uma tradição comum, o entendimento não precisa necessariamente ser procurado ou construído; ele precede a comunidade tradicional, sendo que a palavra da autoridade não precisa ser comprovada com argumentos convincentes, pois é recebida com confiança. Segundo o sociólogo  Zygmunt Bauman, "Tal entendimento não é uma linha de chegada, mas o ponto de partida de toda união". 

Com a perda da tradição se perde a conexão entre passado e futuro. A perda da autoridade é a perda da herança cultural humana. O problema reside na ideia de que aquilo que ocupa o lugar de algo ausente é equivalente a este algo. A violência pode preencher a função da autoridade no sentido de fazer as pessoas obedecerem, mas isso não significa que há presença de autoridade. A autoridade (auctoritas) não corresponde necessariamente no poder (potestas), porque se fundamenta nos feitos do passado, que permanecem vivos por meio da tradição e não naquilo que pode ser feito no presente. Atacar a tradição é atacar a autoridade e vice-versa.

É por este motivo que o movimento politico contra autoridade sempre esteve relacionado com o movimento filosófico contra a tradição. Nos séculos XVI e XVII se estabeleceu na Europa um deísmo universal de inspiração humanista. A exigência de negação do mundo é substituída pela exigência de transformação do mundo. Para isso, o humanismo precisou abrandar o dogma do pecado original. Para o humanista Erasmo de Roterdam, a queda não comprometeu a autonomia da vontade. A potencia divina não mais se distinguia da potencia humana. Para Leibniz, o bem supremo se equiparava a maior soma de felicidade possível, e para Rousseau, a exigência é o direito social, pois o que degrada o ser humano é a cultura, não o pecado. O mal se origina do desenvolvimento humano, e deve por meio dele ser eliminado. 

A partir daí, a secularização atingiu todos os campos da ciência. A física, a história e o direito não esperam mais que a ideia de Deus as ratifique e legitime. O sentido da relação foi mudado, agora são essas que devem ratificar e legitimar a ideia de Deus. O problema não é crer, mas saber qual o critério para a crença. A liberdade significa que se a tradição contradiz a consciência individual, a primeira deve ser abandonada. A autoridade da razão teórica é recusada pelo apelo a subjetividade como princípio autêntico de toda certeza religiosa. Quando Hume desfaz o princípio da causalidade, o deísmo é substituído pelo ceticismo. Mais tarde, Lessing substitui a razão analítica pela sintética, e a visão estática pela dinâmica. 

A democracia rejeita a autoridade porque desconfia de seu critério de legitimação: a tradição. Essa desconfiança gera resistência contra toda forma de orientação. Porém, ao se negar a autoridade, abre-se caminho para o poder coercivo, ainda que cada vez mais entrincheirado na subjetividade, cada vez mais flexível e dinâmico. É um poder que não pode ser reconhecido enquanto poder, mas que se confunde com liberdade e com vontade.

A autonomia para reger a si mesmo, independente dos outros, se torna imperativo da nova ordem politica e social da civilização. O medo de não se adequar a rotina passa a ser o medo de se tornar cativo da rotina. Quando alguém é colocado em uma posição de autoridade, é automaticamente visto como uma figura repressiva. 

Em resumo, a própria civilização passa a rejeitar a autoridade e a transformar a anarquia e o igualitarismo em uma ideia a ser consumida. Ela retira a fundamentação ética das mãos da tradição e a coloca nas mãos do indivíduo. Isso gera a desintegração do princípio normatizador. Esse pluralismo gera busca por algo que substitua as relações fortes. A convivência é tornada insegura pela inconstância e pela dissonância. A cultura não mais espera que haja compromisso entre seus membros ou com valores tradicionais, mas que se persiga a eficiência, a vantagem e o que quer que seja desejável. Mas de onde surgem os desejos, e em relação a que se determina o que é eficiente ou vantajoso? 

Se a sociedade reprimiu o indivíduo no passado, hoje ela o induz a expressão e a inflação do desejo de ser livre para viver sua própria vida como quiser, a despeito de todo resto. A negação da autoridade enquanto fonte de orientação parece ser o valor mais constante da democracia, mas esse valor já foi assimilado tacitamente pela cultura global. A opção escolhida pelos democratas de hoje foi continuar na corrida armamentista contra a cultura, radicalizando ainda mais sua crítica e esperando que dessa vez a crítica não seja assimilada. Mas não é preciso negar a autoridade para tradicional para se opor a repressão e a coerção; precisamos antes de mais nada reconhecer que estamos sempre nos fundamentando em algo, seja visível ou invisível. 







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