A Escravidão da Neurose


 
- Dia do historiador, que homenageia Joaquim Nabuco, associa ativismo político ao trabalho cientifico do historiador - 


"A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil" (J. Nabuco). 

Essa frase do político e diplomata Joaquim Nabuco (1849-1910) foi destacada em matéria da Folha de São Paulo, em 18 de agosto de 2009, véspera dos 160 anos do nascimento de Nabuco, quando dava-se inicio a uma serie de eventos em memória do centenário de sua morte. Naquele mesmo ano, em 17 de dezembro, o nome do abolicionista voltou a ser lembrado na data em que foi sancionada pelo governo Lula a lei que instituiu o Dia Nacional do Historiador, a ser celebrado anualmente em 19 de agosto, aniversário de Nabuco. 

  O autor do projeto de lei do Senado foi o senador Cristovam Buarque, que destacava no texto da proposta a origem da disciplinarização da pesquisa histórica durante o século XIX, com a introdução de arcabouço teórico e métodos próprios, e a relevância da disciplina na construção da identidade nacional. No entanto, o projeto original de Buarque propunha como data para a comemoração o dia 12 de agosto, o que acabou sendo rejeitado, porque, nas palavras do senador Augusto Botelho, que era relator do parecer da Comissão de Educação, Cultura e Esporte "(a data) não está vinculada a nenhum fato significativo que diz respeito a algum ilustre historiador brasileiro". Por meio de duas emendas, Botelho propôs outra data para o Dia Nacional do Historiador: a do nascimento de Joaquim Nabuco. O texto alterado foi aprovado com unanimidade tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados.

  Com base no projeto original, Botelho defendeu a importância da disciplina científica, porém, ressaltou a "relevância social" daqueles que exercem com afinco o ofício de historiador. Segundo ele "graças ao trabalho rigoroso desses profissionais, é possível aos governos e sociedades compreenderem as consequências dos eventos passados e reorientarem as escolhas para o futuro". Em relação a escolha da data, ele justificou ser "uma reverência á luta de Nabuco contra a escravidão. A data, coincidindo ainda com o período letivo, poderá ser uma oportunidade para os estudantes brasileiros refletirem sobre as profundas raízes da desigualdade na sociedade brasileira". 

A maneira pela qual a lei foi aprovada, o contexto de sua elaboração, e sobretudo as emendas com a alteração da data suscitam algumas questões interessantes. Como chave de leitura, podemos entender a criação do Dia Nacional do Historiador como parte de um projeto mais amplo, relacionado as politicas públicas levadas a cabo pelo governo Lula em seus dois mandatos, de 2003 a 2010.

  Destacou-se, naquele período, a incorporação pelo Estado de politicas afirmativas, supostamente direcionadas a população negra brasileira, fundamentadas nas noções de "reconhecimento e reparação". Essas medidas - cristalizadas em formato de leis e comemorações - estão fortemente associadas aquilo que se convencionou chamar de "dever de memória": a necessidade de permanentemente lembrar um acontecimento passado como forma de influenciar o presente. 

  A intenção da criação desta data, portanto, extrapola o sentido de um ato oficial em comemoração de um ofício para evocar a memória da escravidão brasileira. Para isso, a lei traça uma relação direta entre o profissional responsável pelo estudo dos tempos pretéritos e aquele cujo nome figura no imaginário do povo como ícone e herói da abolição. 

Tudo isso é parte de um projeto politico e de poder do governo Lula, em articulação com os movimentos negros. Pode-se supor que o Dia Nacional do Historiador tenha como propósito monumentalizar a escravidão como característica nacional do historiador e da historiografia brasileira. A figura do historiador estaria, via Nabuco, associada ao ativismo politico, e tendo por base a ideologia da "função social do historiador". Esse historiador militante tem que atuar extraindo os acontecimentos históricos dos seus contextos originais, atualizando constantemente o sentimento de culpa e de terror que poderiam estar associados a eles, para então formar seu discurso político-partidário. Ele induz na psique da população uma memoria, que, sendo real ou fictícia, equivale a uma experiência traumática que é renovada incessantemente, oque leva a uma verdadeira neurose no sentido psicanalítico do termo, e que escraviza as pessoas a todos aqueles que, como psicólogos do povo, são capazes de manipular essa neurose. 

É assim que em fins da década de 70, as organizações dos movimentos negros passam a incorporar gradualmente novas práticas politicas e discursos. Com o alinhamento desses movimentos ás ideologias de esquerda, sobretudo a partir dos anos 80, o Estado brasileiro passou a ser responsabilizado pelas supostas desigualdades raciais e pela defasagem educacional dos negros. Diferentes grupos negristas começaram a demandar do Estado politicas publicas especificas, a exemplo daquelas "ações afirmativas" reivindicadas pelo movimento negro nos Estados Unidos. 

A eleição do Partido dos Trabalhadores (PT) á presidência, em 2002, deu origem a implementação de diversas medidas como parte do reconhecimento pelo Estado das reivindicações dos ativistas negros no Brasil, sendo uma parcela destes ativistas já pertencentes as instituições publicas do Poder Executivo, e sendo muitos deles filiados ao PT. 

  Em janeiro de 2003, a lei que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional (LDB), incluiu no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". A mesma lei incorporou ao calendário escolar o 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, acirrando e fomentando as tensões raciais entre a população brasileira. 

Ainda no inicio de sua gestão, Lula criou, em 21 de março de 2003, a Secretaria Especial de Politicas de Promoção da Igualdade Racial. Entre as suas finalidades, estão a articulação e a formulação de diretrizes para a promoção da ideologia negrista, além da coordenação de políticas públicas "afirmativas".

Esse amplo projeto político repercutiu não apenas no campo educacional, mas extrapolou para as áreas da economia, da saúde, da cultura e das relações exteriores. Inaugura-se, por exemplo, uma participação especial do Brasil na política e na economia africana. No primeiro ano de gestão, Lula visitou cinco países africanos: São Tomé e Principe, Angola, Moçambique, África do Sul e Namíbia, oficializando as relações entre os dois continentes e o inicio de uma postura politica e uma diplomacia igualitária e africanista, em contraposição a posição histórica de soberania do Brasil em relação a esses países.

No campo interno, os projetos que orientaram o Ministério da Cultura nas gestões de Gilberto Gil e de seu sucessor Juca Ferreira, também trouxeram contribuições para a narrativa negrista. 

Uma das grandes marcas dessas diretrizes culturais foi a regulamentação, em 20 de novembro de 2003, do procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das chamadas "comunidades quilombolas". Além disso, algumas emendas constitucionais feitas em 2005 estabeleceram o que eles entendem por "valorização da diversidade étnica e regional". 

Através das já mencionadas noções de "reconhecimento e reparação", e de "dever de memória" - recorrentes no discurso politico francês desde a década de 90, que criou as chamadas "leis memoriais"* - o Estado e a sociedade passam a ter obrigações com as comunidades que seriam supostamente herdeiras de um passado que remeteria a ideia de sofrimento e opressão, onde a relação entre história e memoria é uma das coisas mais importantes para o estudo histórico. 

Quanto aos grupos e intelectuais que defendem essa abordagem, não se dão conta da distinção entre os dois conceitos, e nem se atentam para os  riscos da criação de dispositivos jurídicos para a firmação de "verdades históricas", imposição de legisladores acerca dos temas históricos e da ingerência na construção de narrativas históricas diversas. 

Esses perigos foram condenados pelo historiador Pierre Nora, que ele denominou de "tirania da memoria". Segundo ele, cabe ao historiador trabalhar as questões históricas, não aos políticos. O excesso de lembrança e memoria não corresponde, necessariamente, a mais conhecimento sobre o passado, nem a uma compreensão crítica dessas experiências anteriores. Enquanto figuras como Nabuco e Zumbi dos Palmares são evocadas ininterruptamente, outras importantíssimas e notórias - inclusive historiadores como Gustavo Barroso - são completamente esquecidas, como se não houvessem ocupado lugar no tempo e na existência e não houvessem contribuído de alguma maneira para a formação do nosso país. 

Na esteira dessa euforia memoralista internacional, o Brasil tem se destacado por suas inúmeras politicas de patrimonialização, musealização e construção de lugares de memoria em torno da escravidão dos africanos. O exemplo mais recente tem sido o esforço do governo brasileiro, desde 2014, em incluir o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, na lista de Patrimônio Cultural da Humanidade da Unesco. 

Apesar de não existirem no Brasil "leis memoriais" como as da França, a aprovação do Dia Nacional do Historiador e a Escolha de Joaquim Nabuco para representar esse profissional, em clara aproximação com a "memoria da escravidão" brasileira, podem ser entendidas como ingerência do Estado e de certos grupos de interesse sobre a memoria disciplinar da História. Enquanto isso, impera no Brasil todas as mazelas do presente e todos os receios em vista do futuro, além de haver muito o que se desbravar no campo da pesquisa histórica, mas a vontade e a razão da alma brasileira nada podem fazer para se dedicarem a solução desses problemas, pois permanecem cativas da falsa consciência das ideologias alienadoras. Nesse caso, é imprescindível que aproveitemos para lembrar da escravidão que vigora no Brasil, a escravidão da neurose negrista imposta pelas classes dominantes, espoliadoras da riqueza nacional. 


*As chamadas Leis Memoriais foram cunhadas na França em 2005. Designam quatro dispositivos legais que dispõe sobre eventos históricos sancionados como resposta ás demandas das comunidades cujas memorias se ligam a esses eventos. São eles: A lei Gayssot, de Julho de 1990, que torna crime a negação do Holocausto: a lei de 29 de Janeiro de 2001 em cujo artigo único a França reconhece publicamente o genocídio armênio de 1915; a lei de 21 de maio do mesmo ano, na qual a Republica francesa reconhece o trafico de escravos e a escravidão - praticados a partir do século XV - como crimes contra a humanidade, e a lei de 23 de fevereiro de 2005, que dispõe sobre o reconhecimento aos franceses repatriados após as guerras de independência. 


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