A ORIGEM DA FAMÍLIA SEGUNDO ENGELS: TRIUNFO DO AMOR E DA MULHER

 



Por Felipe Stancioli



Essa análise surgiu da minha tentativa de demonstrar que - ao contrário do que diz o senso comum - o texto de Engels sobre a origem da família jamais poderia servir para fundamentar o feminismo, tanto em sua militância como em sua cultura. O que contrapõe tanto a esquerda quanto a direita, que vem, cada um do seu lado, contribuindo para pintar a imagem de um Engels proto-feminista.
Feministas e conservadores então são complementares e unânimes. Tanto uns quanto outras gostam muito da ideia de que Karl Marx no final do seu desenvolvimento intelectual, teria deixado suas concepções econômicas e politicas de lado, para fazer da instituição familiar um alvo prioritário.

A verdade é que, Marx já faz menção a abolição da família no Manifesto Comunista de 1848, mas se confrontarmos aquilo ao texto do Engels, e levando em consideração o alinhamento conceitual que existia entre estes dois parceiros intelectuais, podemos concluir que a família a qual Marx se refere é uma forma de família específica que é a família burguesa. Ainda assim, devemos observar que o fim da família burguesa é uma consequência natural da revolução proletária, mas não é seu fundamento. A "causa comunista" afinal, diz Marx, pode ser resumida em: " abolição da propriedade privada" e não em abolição da família. 

As críticas de Marx e Engels à família certamente passam bem distantes do sentimento de aversão às relações humanas que impera na esquerda atualmente, típico de uma sociedade liberal onde impera o "amor líquido". Mas, para os pioneiros do socialismo científico, as condições econômicas onde ocorrem os relacionamentos tem um papel muito determinante, e é assim principalmente porque é a propriedade que faz com que emerjam as classes e seus antagonismos. 

Quanto menos desenvolvido é o trabalho, mais restrita é a quantidade de seus produtos e, por consequência, a riqueza da sociedade; com tanto maior força se manifesta a influência dominante dos laços de parentesco sobre o regime social. Contudo, no marco dessa estrutura da sociedade baseada nos laços de parentesco, a produtividade do trabalho aumenta sem cessar e, com ela, desenvolvem-se a propriedade privada e as trocas, as diferenças de riqueza, a possiblidade de empregar força de trabalho alheia e com isso a base dos antagonismos de classe: os novos elementos sociais que, no transcurso de gerações, procuram adaptar a velha estrutura da sociedade às novas condições, até que, por fim, a incompatibilidade entre estas e aquela leva a uma revolução completa. A sociedade antiga, baseada nas uniões gentílicas, vai pelos ares, em consequência do choque de classes sociais recém-formadas; dá lugar a uma nova sociedade organizada em Estado, cujas unidades inferiores já não são gentílicas e sim unidades territoriais - uma sociedade em que o regime familiar está completamente submetido às relações de propriedade e na qual têm livre curso as contradições de classe e luta de classes, que constituem o conteúdo de toda historia escrita até nossos dias. (Engels 1884) 

Se há no final da vida de Marx e Engels qualquer ênfase diferenciada, se deve principalmente à abertura de outras áreas de estudo, em maior parte por Engels, que incorporou concepções cientifico-naturais à teoria materialista. Isso pode ser visto na série de artigos escritos, intitulados como "Anti-Duhring" e que se tornaram mais difundidas em sua época do que o próprio Capital de Marx.
A teoria materialista deveria determinar os fatores decisivos da história; a PRODUÇÃO e a REPRODUÇÃO:

"Mas essa produção e essa reprodução são de dois tipos: de um lado a produção de meios de subsistência, de produtos alimentícios, roupa, habitação e instrumentos necessários para tudo isso; do outro lado, a produção do homem próprio, a continuação da espécie." (A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado- Engels, 1884 pág. 34). 

Para a obra citada, Engels aproveitado rascunhos  e notas feitas a partir do estudo do livro Ancient Society (Lewis H. Morgan). Ele credita o livro da seguinte forma: 
"Na América, Morgan redescobriu, à sua maneira, a concepção materialista da história - formulada por Marx quarenta anos antes - e, baseado nela, chegou, contrapondo barbárie e civilização, aos mesmos resultados essenciais de Marx." (Prefácio à primeira edição, 1884).
Para começarmos a entender sua posição, é importante verificar (ibid. pág. 64/66) que a família, para Engels, não é algo fixo, imutável, mas que se desenvolve paralelamente às forças produtivas e evolui para designar diversas formas de uniões conjugais e relações parentais. As formas de matrimônio evoluem, passando por vários estágios até a monogamia da época de Engels. E aqui eu recomendaria que se iniciasse com um discernimento muito importante. O que na maior parte do texto do Engels é chamado de MONOGAMIA, não serve para designar simplesmente o que nós, nos dias de hoje, entendemos pelo termo. Engels, na verdade, descreve três formas de 'monogamia' que se dariam ao longo do tempo, a primeira delas corresponde a chamada "família sindiásmica". 
Este tipo de matrimônio correspondente ao tipo de Família que Engels chama de sindiásmica e que é descrito como o primeiro tipo de relação mais estável entre duas pessoas. Essa forma de relação, segundo Engels, é a que surge com o fim dos casamentos por grupos, e serve como intermédio para o tipo ulterior de monogamia. Para Engels, isto se dá dessa forma:

No regime de matrimônio por grupos, ou talvez antes, já se formavam uniões por pares, de duração mais ou menos longa; o homem tinha uma mulher principal entre suas numerosas esposas, e era para ela o esposo principal entre todos os outros. (...) À medida, porém, que evoluíam as gens e iam-se fazendo mais numerosas as classes de "irmãos" e "irmãs", entre os quais agora era impossível o casamento, a união conjugal por pares, baseada no costume, foi-se consolidando. (...) Com esta crescente complicação das proibições de casamento, tornaram-se cada vez mais impossíveis uniões por grupos, que foram substituídas pela família sindiásmica. (Engels 1891 - pagina 48/49)
De acordo com o que podemos ver em Engels (Ibid., pág. 49) esse tipo de matrimônio é parecido com o que temos hoje em dia, pois "Na família sindiásmica já o grupo havia ficado reduzido a sua ultima unidade, a sua molécula biatômica: um homem e uma mulher." (pág. 56) e apesar da fidelidade da mulher ser mais cobrada que a do homem, a filiação pode ser rompida por ambas os lados, "O matrimônio é dissolúvel à vontade de cada um dos cônjuges." (pág. 50) Nesse caso, os filhos ainda continuam a pertencer à mãe exclusivamente, para melhor compreensão: 

A evolução da família nos tempos pré-históricos, portanto, consiste numa redução constante do círculo em cujo seio prevalece à comunidade conjugal entre os sexos, círculo que originariamente abarcava a tribo inteira. A exclusão progressiva, primeiro dos parentes próximos, depois dos parentes distantes e, por fim, até das pessoas vinculadas apenas por aliança, torna impossível, na prática, qualquer matrimônio por grupos; como último capítulo, não fica senão o casal, unido por vínculos ainda frágeis - essa molécula com cuja dissociação acaba o matrimonio em geral. (ibid. pág. 49).

Só que o mais importante deste estágio é que Engels aponta que as MULHERES teriam sido AS MAIORES INTERESSADAS nesta passagem de relações grupais para relações 'monogâmicas', ou 'unigâmicas', ou seja, uma relação mais estreita, entre apenas um homem e uma mulher. Vejamos: 
“Afora isso, Bachofen tem evidente razão quando afirma que a passagem do que ele chama de "heterismo" ou "sum-pfzeugung" à monogamia realizou-se essencialmente graças às mulheres. (...) que com maior força deviam ansiar pelo direito a castidade, como libertação, pelo direito ao matrimonio, temporário ou definitivo, com um só homem. (...) Só depois de efetuada pela mulher a passagem ao casamento sindiásmico, é que foi possível aos homens introduzirem a estrita monogamia.” (ibid. Pág. 55/56).
Percebam que essa relação monogâmica "estrita", a qual Engels diz ter sido introduzida depois pelos homens, é que se trata da filiação que corresponde à família monogâmica "opressora" a qual ele vai se referir mais pra frente.
É importante considerar, que até aquele período, oque é apontado como tendo papel decisivo no regime social não são as determinações econômicas, mas sim laços de consanguinidade:
A seleção natural realizara sua obra, reduzindo cada vez mais a comunidade dos matrimônios. Nada mais havia a fazer nesse sentido. Portanto, se não tivessem entrado em jogo novas forças impulsionadoras de ordem social, não teria havido qualquer razão para que da família sindiásmica surgisse outra forma de família. Mas tais forças impulsionadoras entraram em jogo. (ibid. pág. 56). 
Tais forças, como Engels vai apontar nas páginas seguintes, são as relações de propriedade... 
Convertidas todas essas riquezas em propriedade particular das famílias, e aumentadas depois rapidamente, assestaram um rude golpe na sociedade alicerçada no matrimonio sindiásmico e na gens baseada no matriarcado. O matrimônio sindiásmico havia introduzido na família um elemento novo. Junto a verdadeira mãe, tinha posto o verdadeiro pai, provavelmente mais autentico que muitos "pais" dos nossos dias. De acordo com a divisão do trabalho na família de então, cabia ao homem procurar alimentação e os instrumentos de trabalho necessários para isso. Consequentemente, era, por direito, o proprietário dos referidos instrumentos, e em caso de separação levava-os consigo, da mesma forma que a mulher conservava os seus utensílios domésticos. Assim, segundo os costumes daquela sociedade, o homem era igualmente proprietário do novo manancial de alimentação, o gado. E mais adiante, do novo instrumento de trabalho, o escravo. Mas consoante o uso daquela mesma sociedade seus filhos podiam herdar dele (...). Dessa forma, pois, as riquezas, à medida que iam aumentando, davam, por um lado, ao homem uma posição mais importante que a da mulher na família, e, por outro lado, faziam com que nascesse nele a ideia de valer-se desta vantagem para modificar, em proveito de seus filhos, a ordem da herança estabelecida. Mas isso não se poderia fazer enquanto permanecesse vigente a filiação segundo o direito materno. Esse direito teria que ser abolido, e o foi. (ibid. pág. 58,59). 

Surge então, o patriarcado, e notem que, apesar da seguinte asserção de Engels (pagina 61) "O desmoronamento do direito materno, a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo". está claro que o direito paterno surge como uma categoria econômica, totalmente indispensável para o desenvolvimento das forças produtivas: 

E, com a aparição dos rebanhos e outras riquezas novas, operou-se uma revolução na família. O providenciar alimentação sempre foi assunto do homem; e os instrumentos necessários para isso eram produzidos por ele e de sua propriedade ficavam sendo. Os rebanhos constituíam nova fonte de alimentos e utilidades; sua domesticação e sua ulterior criação competiam ao homem. Por isso o gado lhe pertencia, assim como as mercadorias e os escravos que obtinha em troca dele. Todo o excedente deixado agora pela produção pertencia ao homem; a mulher tinha participação no consumo, porem não na propriedade. O "selvagem" - guerreiro e caçador - se tinha conformado em ocupar o segundo lugar na hierarquia doméstica e dar precedência à mulher; o pastor, mais "suave" envaidecido com a riqueza, tomou o primeiro lugar, relegando a mulher para o segundo. E ela não podia reclamar. A divisão do trabalho na família havia sido a base para a distribuição da propriedade entre homem e mulher, essa divisão do trabalho na família continuava sendo a mesma, mas agora transtornava as relações domésticas, pelo simples fato de ter mudado a divisão do trabalho fora da família. A mesma causa que havia assegurado à mulher sua anterior supremacia na casa - a exclusividade no trato dos problemas domésticos - assegurava agora preponderância do homem no lar: o trabalho doméstico da mulher perdia agora sua importância, comparado com o trabalho produtivo do homem; este trabalho passou a ser tudo aquele uma insignificante contribuição. (ibid. pág. 181, 182).

Devo aqui abrir um parêntese para algumas considerações sobre meus destacamentos. É interessante notar, que o papel da mulher nas sociedades ditas matriarcais, ou, no que Engels e Marx chamavam de "comunismo-primitivo", estava relacionado à economia domestica, ou seja, poder-se-ia dizer que o lugar que a mulher ocupou sempre foi o "lar", ou, no caso da gens e tribo, a parte "interna" da sociedade. A alienação da mulher, na ocasião, não foi necessariamente a privação de sua participação nas atividades típicas dos homens. Afinal, a única divisão existente na sociedade matriarcal, era justamente baseada no sexo - e percebam que, divisão aqui não significa antagonismo - como uma divisão natural. Não obstante, apesar de a mulher ocupar uma função economicamente importante, e ter voz sobre as 'políticas' das gens e das tribos, todas as lideranças eram masculinas, tanto dos lideres 'comuns' ou 'gerais', quanto dos lideres militares. Sobre o desenvolvimento da sociedade baseado nesse modelo primitivo, Engels o descreverá como uma "democracia militar".  

Agora sim, chegamos à forma de família, que Engels descreve de fato como "família monogâmica". É, de acordo com minha separação, a segunda forma de monogamia descrita por Engels. A partir de agora, vou usar *opressora* entre parêntese, para designar essa forma de matrimonio. Portanto, segundo Engels, essa forma de relação... 

Baseia-se no predomínio do homem; sua finalidade expressa é a de procriar filhos cuja paternidade seja indiscutível; e exige-se essa paternidade indiscutível porque os filhos, na qualidade de herdeiros diretos, entrarão um dia, na posse dos bens de seu pai. A família monogâmica diferencia-se do matrimônio sindiásmico por uma solidez muito maior dos laços conjugais, que já não podem ser rompidos por vontade de qualquer das partes. (ibid. pagina 66).

Nas linhas que se segue, Engels aponta para como a mulher, desde o período clássico, é tida como inferior, sem participação social ou politica, a mulher é tratada de forma análoga aos escravos é, portanto, uma propriedade do homem (muito embora, no próprio texto, essa descrição se trate mais do modelo grego de família, e principalmente ao modelo Ateniense). 

Essa foi a origem da monogamia, tal como pudemos observá-la no povo mais culto e desenvolvido da antiguidade (...). Foi a primeira forma de família que não se baseava em condições naturais, mas econômicas, e concretamente no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva, originada espontaneamente. (ibid. pagina 70). 

Talvez, de todo o capitulo, o trecho que dê mais margem para uma interpretação feminista, seja esse:

o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino. (ibid. pagina 70/71). 

Mal interpretado, esse trecho exato é usado, em detrimento de todo o resto, para justificar o feminismo. Ora, até fiz questão de destacar, pois o trecho diz que o primeiro antagonismo COINCIDE com o antagonismo entre homens e mulheres e não que AQUELE tem origem NESTE...

Como "Por certo, a família monogâmica não se revestiu, em todos os lugares e épocas, da forma clássica e rígida que teve entre os gregos" (pagina 73). Pode-se ver argumentar, no próprio Engels, outro aspecto de caráter 'progressista', vinculado a monogamia. Pela mistura dos povos, surge uma nova monogamia, segundo Engels, a ela nós devemos o "progresso moral" do "amor sexual individual moderno, anteriormente desconhecido do mundo." (pagina 75). Agora, estamos chegando à terceira forma de "monogamia" (conforme minha separação) que consta no texto de Engels. A essa "nova monogamia" a qual só o sentimento de dois indivíduos determina sua filiação, eu chamarei de monogamia-emancipada (observem que, não me refiro ainda à monogamia dos nossos dias). 

Falei anteriormente que havia uma falta de diferenciação sobre o uso do conceito de monogamia por Engels, mas, é possível dizer que, há uma omissão ainda muito maior, muito mais grotesca na interpretação desse texto. Ora, podemos imaginar que, se estamos tratando de luta de classes, deveríamos saber como ela influencia as relações familiares de classes diferentes, e Engels não deixou de faze-lo: 

Nas relações com a mulher, o amor sexual só pode ser, de fato, uma regra entre as classes oprimidas, quer dizer, em nossos dias, o proletariado, estejam ou não estejam autorizadas oficialmente essas relações. Mas, desaparecem também, nesses casos, todos os fundamentos da monogamia clássica. Faltam aqui, por completo, os bens de fortuna, para cuja conservação e transmissão por herança foram instituídos, precisamente, a monogamia e o domínio do homem; e, por isso, aqui também falta todo o motivo para estabelecer a supremacia masculina. Mais ainda, faltam até os meios de consegui-lo: o direito burguês, que protege essa supremacia, só existe para as classes possuidoras e para regular as relações destas classes com os proletários. Isso custa dinheiro, e por força da pobreza do operário, não desempenha papel algum na atitude deste para com sua mulher. (...) a mulher reconquistou, na prática, o direito de divórcio e os esposos preferem se separar quando já não se podem entender um com o outro. Resumindo: o matrimonio proletário é monogâmico no sentido etimológico da palavra, mas de modo algum em seu sentido histórico. (ibid. pág. 77, 78). 

Se os motivos e meios para estabelecer a dominação masculina, são das classes possuidoras, seria justo lutar pelo fim das classes, a não ser que o feminismo surgisse para emancipar APENAS MULHERES DA CLASSE DOMINANTE! 
  Nesse caso, o feminismo é uma causa totalmente distinta da causa socialista. De qualquer forma, o problema das mulheres, mesmo na época de Engels, já não era jurídico. Como todos sabem - e é o caso do Brasil -  mesmo depois de politicamente independente, pode-se permanecer sob influência de outros devido a obrigações econômicas, assim também as mulheres e os filhos se manteriam sob a influência dos homens, pela mesma lógica de dependência econômica.  
Esta condição [emancipação] só pode ser alcançada com a grande indústria moderna, que não apenas permite o trabalho da mulher em grande escala, mas até o exige, e tende cada vez mais a transformar o trabalho doméstico privado em uma indústria publica.(ibid. pág. 182). 
O matrimônio, pois, só se realizara com toda a liberdade quando, suprimidas a produção capitalistas e as condições de propriedade criadas por ela, forem removidas todas as considerações econômicas acessórias que ainda exercem uma influência tão poderosa na escolha dos esposos. Então, o matrimônio já não terá outra causa determinante que não a inclinação recíproca. (pagina 89). 

E agora cabe a pergunta: tendo surgido de causas econômicas, a monogamia desaparecerá quando desaparecerem essas causas? Poder-se-ia responder, e não sem fundamento: longe de desaparecer, antes há de se realizar plenamente a partir desse momento. (ibid. pagina 82).
Isso, é claro, afetaria tanto as mulheres quanto os homens e portanto está longe de ser uma questão de gênero somente. O fato é que Engels não idealizou nenhum"comunismo-sexual", promiscuidade ou "poliamor", muito pelo contrario:

E, desde que o amor sexual é, por sua própria natureza, exclusivista - embora em nossos dias esse exclusivismo só se realize plenamente sobre a mulher - o matrimonio baseado no amor sexual será, por sua própria natureza, monogâmico. Vimos quanta razão tinha Bachofen em considerar o progresso do matrimonio por grupos ao matrimonio por pares como obra devida, sobretudo a mulher; apenas a passagem do casamento sindiásmico a monogamia [opressora] pode ser atribuída ao homem, e historicamente consistiu, na essência num rebaixamento da posição das mulheres e numa facilitação da infidelidade dos homens. Por isso, quando chegarem a desaparecer as considerações econômicas em virtude das quais as mulheres foram obrigadas a aceitar essa infidelidade masculina habitual- a preocupação pela própria subsistência e ainda mais pelo futuro dos filhos - a igualdade alcançada pela mulher, a julgar por toda a nossa experiência anterior, influirá muito mais no sentido de tornar os homens monogâmicos do que no de tornar as mulheres poliandras. (pagina 89) 

Pode-se concluir então, que essa seria uma relação, antes de qualquer coisa, 'desinteressada', isto é, no sentido econômico. Ademais, a partir daqui, só resta preencher o vão, entre uma forma de relação de gênero que tem basicamente seu principio no mundo antigo, e que segundo Engels só pode se consolidar num mundo comunista, o que compreende, portanto nossa época atual. Nessa direção, Engels e o marxismo só podem dar um pontapé inicial. 

"a ironia da história do mundo é insondável" Diria Engels: 

(...) seria precisamente o capitalismo que abriria nesse modo de matrimonio [opressor] a brecha decisiva. Ao transformar todas as coisas em mercadorias, a produção capitalista destruiu todas as antigas relações tradicionais e substituiu os costumes herdados e os direitos históricos pela compra e venda, pelo "livre" contrato. O jurisconsulto inglês H.S. Maine acreditou ter feito um descobrimento extraordinário ao dizer que nosso progresso em relação às épocas anteriores consiste em que passamos "from status to contract" isto é, de uma ordem de coisas herdada para outra livremente consentida - uma afirmação que, na medida em que é correta, já se encontrava há muito no manifesto comunista - Mas, para firmar contratos, e necessário que haja pessoas que possam dispor livremente de si mesmas, de suas ações e de seus bens, e que se defrontem em igualdade de condições. Criar essas pessoas "livres" e "iguais" foi exatamente uma das principais tarefas da produção capitalista (pagina 86/ 87)
(...) oque, sem sombra de dúvida, vai desaparecer da monogamia é o conjunto dos caracteres que lhe foram impressos pelas relações de propriedade a que deve sua origem. (...) A indissolubilidade do matrimonio é consequência em parte das condições econômicas que engendraram a monogamia e, em parte, uma tradição da época em que mal compreendida ainda, a vinculação dessas condições econômicas com a monogamia foi exagerada pela religião. Atualmente já está fendida por mil lados. (pagina 90).

Se já naquela época, estava fendida por mil lados, é só olhar para o mundo hoje* e constatar que não foi preciso o fim do capitalismo para a inserção da mulher no mercado de trabalho e nos diversos setores da sociedade, mas - como já de certa forma prevista - se trata de um encadeamento totalmente condizente com a lógica mercantil, incluindo aqui, talvez, (como na analise marxista) sua possível contribuição à transição para um sistema de produção comunista, afinal, para Marx e Engels, o todo social se revoluciona com um determinado modo de produção sucessivamente engendrando o outro, portanto, o socialismo e suas relações de produção deveriam surgir eles mesmos do desenvolvimento do capital. 

Forçosamente essas questões deveriam surgir numa época em que se afrouxavam todos os antigos vínculos sociais e em que eram sacudidos os fundamentos de todas as concepções tradicionais. (...) Em resumo: proclamava-se como um direito do ser humano o matrimônio por amor; e não só como droit de l'homme [direito do homem], mas também, e por exceção, como um droit de la femme [direito da mulher]. (pagina 88).

É preciso que se diga ainda que, no ocidente, a cultura patriarcal já não tem quase valor nenhum, inclusive economicamente - e aqui novamente - como lógica inexorável do sistema. Destruir o patriarcado, pois, o comunismo também não vai precisar fazer, pois o capitalismo já o fez, como o próprio Marx admitiu:

"A burguesia, aonde chegou à dominação, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. "(Manifesto Comunista - pagina 31).

Nada mais antiquado do que os valores familiares, totalmente prescindíveis, numa sociedade aonde pop stars e casais gays podem adotar crianças de outro continente, por essas novas formas de família talvez nem Engels esperava, muito embora, tanto ele quanto Marx sabiam que mudanças eram inevitáveis. 

A burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção, portanto, todas as relações. O permanente revolucionamento da produção, o ininterrupto abalo de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos distinguem a época da burguesia de todas as outras. Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu cortejo de vetustas representações e intuições, são dissolvidas, todas as recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo o que era dos estados [ou ordens sociais — Ständisch] e estável se volatiliza, tudo o que era sagrado é dessagrado, e os homens são por fim obrigados a encarar com olhos prosaicos a sua posição na vida, as suas ligações recíprocas. (ibid. 32). 
 
Muito embora não tenhamos chegado à relação "emancipada", é provável que, nos dias de hoje, a prostituição direta e indireta, seja em grande parte interesse das mulheres, que se utilizam do sexo para escalar socialmente. O que há de semelhante, em relação aos homens? Mulheres ainda sonham e buscam o matrimonio estável, legal e religiosamente constituído em maior quantidade do que os homens. E se a condição da mulher, pela maternidade ou pelos seus gostos, talentos, e expectativas características, se utilizam do aparato Estatal e da militância ideológica para fazer frente aos homens sempre por melhores condições, salários e status - o que aqui não terá sua legitimidade discutida - isso ainda fazem dentro da lógica do sistema atual, pois ser livre para 'competir' é a condição básica deste sistema. Portanto é possível dizer que, caso um dia nos emanciparmos desse estado de coisas, será sem o feminismo, e até contra ele. 
Referências:

A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado - editora civilização brasileira 11ª edição tradução de Leandro Konder. 

Manifesto Comunista.


Nenhum comentário:

Postar um comentário